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Viviane Vergueiro: Despatologizar é descolonizar

Based on the limited data at our disposal and within the activism networks Viviane engages with, the present conditions for trans individuals in Brazil persist in causing concern, contributing to the broader phenomenon of trans genocide worldwide.

NOTE: This article is only available in Portuguese.

  • Written by
  • Viviane Vergueiro
  • Published
  • 26 October 2015
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De acordo com os poucos dados que temos disponíveis, e com as redes de ativismo de que faço parte, a situação atual de pessoas trans no Brasil continua preocupante e se constitui como parte dos processos de genocídio trans no mundo. Nas intersecções de classe, raça e ocupação econômica, o líder global em assassinatos de pessoas trans persiste com violências institucionais e não institucionais contra estas comunidades: somente neste ano, por exemplo, tomamos conhecimento das violências e descasos policiais brutais contra Veronica Bolina e Laura Vermont, a primeira tendo sido torturada nas dependências da polícia militarizada do estado de São Paulo, e a outra assassinada com envolvimento direto de policiais, entre tantas outras instâncias cissexistas nas mais variadas esferas. O Brasil é um país hostil às identidades de gênero não cisgêneras, e particularmente contra as populações travestis pobres, negras e prostitutas.

Para além destas violências diretas e explícitas, é preciso dizer que outras violências institucionais no âmbito da saúde e educação também persistem. A incompetência e desinteresse em se compreenderem os corpos e existências trans nas suas complexidades implica em processos de exclusão das escolas e de instituições de saúde, comprometendo suas possibilidades de vida. No âmbito sociocultural, a cobertura midiática e outras expressões artísticas seguem, apesar da ampliação da visibilidade trans mundo afora, com perspectivas exotificantes, patologizantes, simplificadoras e criminalizantes sobre as vivências trans.

No entanto, é preciso apontar também que diversas articulações e organizações têm ampliado as resistências trans pelo país. A partir de apoios institucionais de Universidades e Defensorias Públicas, por exemplo, diversas pessoas trans têm tido sucesso na alteração de seus nomes e gêneros em documentos oficiais, apesar da inviabilidade política de aprovação de uma Lei de Identidade de Gênero brasileira. Por outro lado, é notável a participação crescente de ativistas trans travestis em espaços políticos, desde espaços institucionais como a Secretaria de Direitos Humanos, até as ruas e atividades públicas. Estas presenças têm relação, também, com a formação recente de algumas redes de aprendizagem autônomas para pessoas trans em algumas cidades do país (visando o acesso ao ensino superior e à conclusão do ensino médio), bem como o início da articulação de redes de atenção à saúde para além das limitações do chamado ‘Processo Transexualizador’ do Sistema Único de Saúde (SUS), o único ambiente supostamente dedicado à atenção e cuidado específicos a pessoas trans na saúde pública brasileira.

O ‘Processo Transexualizador’ a que me referi é a base para a atenção específica às populações trans no sistema público de saúde (SUS), e é significativamente fundamentado em perspectivas patologizantes sobre a diversidade de identidades de gênero. Isso implica, no meu ponto de vista, em duas limitações críticas dentro do contexto brasileiro: (1) problemas relacionados às restrições próprias do paradigma patologizante em compreender as complexidadas das vivências trans, levando a um modelo de atenção à saúde que homogeniza e simplifica as demandas feitas por pessoas trans neste sistema (algo que já levou à exclusão explícita das vivências travestis e das vivências trans não heterossexuais deste processo), além de conferir poderes decisórios às pessoas profissionais de saúde que colocam em risco as ideias de consentimento informado e autonomia corporal para pessoas trans; e (2) a desresponsabilização dos sistemas de saúde como um todo no atendimento a pessoas trans, mesmo quando não se trate de alguma demanda específica às vivências trans; ou seja, em alguma medida o modelo patologizante do ‘Processo Transexualizador’ legitima que, fora dos pouquíssimos e insuficientes ‘ambulatórios trans’ existentes no país (são alguns 4, no total), as pessoas profissionais de saúde não sejam responsáveis por conhecer minimamente, durante e depois de suas formações profissionais, as características e necessidades específicas de saúde de pessoas trans a partir de uma perspectiva de diversidades corporais e de identidades de gênero (e não de normalidade saudável versus anormalidades transtornadas). Esta desresponsabilização tem como consequência frequentes violências e constrangimentos às pessoas trans, muitas vezes inviabilizando seu acesso a recursos básicos de saúde.

Os tensionamentos institucionais com o Ministério da Saúde talvez configurem o maior esforço direto de questionamento da (psico)patologização das identidades trans travestis no Brasil. Entretanto, é necessário enfatizar que as relações de poder envolvidas nestes diálogos ainda posicionam os saberes ‘científicos’ patologizantes hierarquicamente acima das perspectivas críticas às suas limitações e violências, tornando complicadas estas lutas políticas.

Neste sentido, outros enfrentamentos dentro de ativismos e na academia também merecem destaque, assim como o posicionamento de órgãos como o Conselho Federal de Psicologia, que é uma das pouquíssimas instituições que se colocam explicitamente contra a patologização das vivências trans. No entanto, ainda vejo muito potencial para ampliarmos e aprofundarmos estes enfrentamentos ao paradigma patologizante, dado o difícil contexto atual em que é complicado até manter uma estrutura precária como a do ‘Processo Transexualizador’ em funcionamento.

O que me motiva em participar deste importante movimento global é a consciência de que um cuidado e atenção adequados às populações trans, em suas diversidades interseccionais e de demandas de saúde, somente pode ser alcançado com o questionamento incessante e crítico de um paradigma de saúde que é extremamente limitado e construído sobre bases normativas violentas (cissexistas, elitistas, racistas, colonialistas). Este enfrentamento, a meu ver, é um caminho necessário para que superemos estas limitações, em um processo que necessariamente se articula com a ampliação das autonomias corporais e de autodeterminação de gêneros, com a defesa de uma saúde não mercantilizada que seja pública, gratuita e de qualidade, e com o fim dos corporativismos médicos que violentam populações há séculos de imposições de colonialidades. Nestes sentidos, compreendo que a despatologização das vivências trans se insere em um amplo projeto de transformação sociocultural, com enfoque particular nas diversidades corporais e de identidades de gênero e suas demandas específicas e complexas.

Gostaria de agradecer pela oportunidade de trazer uma (breve) contextualização brasileira sobre a (psico)patologização das vivências trans, enfatizando também que as especificidades deste paradigma normatizante em países como o Brasil — de história colonial, racista, elitista — se articulam profundamente com colonialidades de poder e saber nas ciências fabricadas no norte global. Neste sentido, estas colonialidades científicas repercutem negativamente contra as perspectivas de gênero que sejam diferentes e mais complexas do que os modelos eurocêntricos que norteiam a construção dos saberes sobre identidades de gênero. Um exemplo importante desta repercussão negativa está na ocidentalidade envolvida na produção discursiva das identidades trans, que não raro apaga e marginaliza experiências, cosmogonias e autopercepções de gênero que não podem ser circunscritas aos paradigmas cisnormativos e ocidentais que influenciam nossas miradas sobre corpos humanos. É preciso descolonizar, interseccionalmente, as diversidades corporais e de identidades de gênero.

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Viviane Vergueiro, mulher transfeminista brasileira, ativista e intelectual pelos direitos Trans. Formada em ciencias económicas passa ao mundo das ciencias humanas e sociais para estudar e pensar as problemáticas dos sujeitos Trans e de generos inconformes a partir de matrizes epistemológicas que procuram romper com o essencialismo e a normatividade das ciencias coloniais.

Photo of Viviane Vergueiro smiling and looking directly into the camera
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Viviane Vergueiroshe/her

Academic Guest author

Viviane Vergueiro is a Brazilian transfeminist woman, activist and intellectual for trans rights.