De acordo com os poucos dados que temos disponíveis, e com as redes de ativismo de que faço parte, a situação atual de pessoas trans no Brasil continua preocupante e se constitui como parte dos processos de genocídio trans no mundo. Nas intersecções de classe, raça e ocupação econômica, o líder global em assassinatos de pessoas trans persiste com violências institucionais e não institucionais contra estas comunidades: somente neste ano, por exemplo, tomamos conhecimento das violências e descasos policiais brutais contra Veronica Bolina e Laura Vermont, a primeira tendo sido torturada nas dependências da polícia militarizada do estado de São Paulo, e a outra assassinada com envolvimento direto de policiais, entre tantas outras instâncias cissexistas nas mais variadas esferas. O Brasil é um país hostil às identidades de gênero não cisgêneras, e particularmente contra as populações travestis pobres, negras e prostitutas.
Para além destas violências diretas e explícitas, é preciso dizer que outras violências institucionais no âmbito da saúde e educação também persistem. A incompetência e desinteresse em se compreenderem os corpos e existências trans nas suas complexidades implica em processos de exclusão das escolas e de instituições de saúde, comprometendo suas possibilidades de vida. No âmbito sociocultural, a cobertura midiática e outras expressões artísticas seguem, apesar da ampliação da visibilidade trans mundo afora, com perspectivas exotificantes, patologizantes, simplificadoras e criminalizantes sobre as vivências trans.
No entanto, é preciso apontar também que diversas articulações e organizações têm ampliado as resistências trans pelo país. A partir de apoios institucionais de Universidades e Defensorias Públicas, por exemplo, diversas pessoas trans têm tido sucesso na alteração de seus nomes e gêneros em documentos oficiais, apesar da inviabilidade política de aprovação de uma Lei de Identidade de Gênero brasileira. Por outro lado, é notável a participação crescente de ativistas trans travestis em espaços políticos, desde espaços institucionais como a Secretaria de Direitos Humanos, até as ruas e atividades públicas. Estas presenças têm relação, também, com a formação recente de algumas redes de aprendizagem autônomas para pessoas trans em algumas cidades do país (visando o acesso ao ensino superior e à conclusão do ensino médio), bem como o início da articulação de redes de atenção à saúde para além das limitações do chamado ‘Processo Transexualizador’ do Sistema Único de Saúde (SUS), o único ambiente supostamente dedicado à atenção e cuidado específicos a pessoas trans na saúde pública brasileira.
O ‘Processo Transexualizador’ a que me referi é a base para a atenção específica às populações trans no sistema público de saúde (SUS), e é significativamente fundamentado em perspectivas patologizantes sobre a diversidade de identidades de gênero. Isso implica, no meu ponto de vista, em duas limitações críticas dentro do contexto brasileiro: (1) problemas relacionados às restrições próprias do paradigma patologizante em compreender as complexidadas das vivências trans, levando a um modelo de atenção à saúde que homogeniza e simplifica as demandas feitas por pessoas trans neste sistema (algo que já levou à exclusão explícita das vivências travestis e das vivências trans não heterossexuais deste processo), além de conferir poderes decisórios às pessoas profissionais de saúde que colocam em risco as ideias de consentimento informado e autonomia corporal para pessoas trans; e (2) a desresponsabilização dos sistemas de saúde como um todo no atendimento a pessoas trans, mesmo quando não se trate de alguma demanda específica às vivências trans; ou seja, em alguma medida o modelo patologizante do ‘Processo Transexualizador’ legitima que, fora dos pouquíssimos e insuficientes ‘ambulatórios trans’ existentes no país (são alguns 4, no total), as pessoas profissionais de saúde não sejam responsáveis por conhecer minimamente, durante e depois de suas formações profissionais, as características e necessidades específicas de saúde de pessoas trans a partir de uma perspectiva de diversidades corporais e de identidades de gênero (e não de normalidade saudável versus anormalidades transtornadas). Esta desresponsabilização tem como consequência frequentes violências e constrangimentos às pessoas trans, muitas vezes inviabilizando seu acesso a recursos básicos de saúde.
Os tensionamentos institucionais com o Ministério da Saúde talvez configurem o maior esforço direto de questionamento da (psico)patologização das identidades trans travestis no Brasil. Entretanto, é necessário enfatizar que as relações de poder envolvidas nestes diálogos ainda posicionam os saberes ‘científicos’ patologizantes hierarquicamente acima das perspectivas críticas às suas limitações e violências, tornando complicadas estas lutas políticas.
Neste sentido, outros enfrentamentos dentro de ativismos e na academia também merecem destaque, assim como o posicionamento de órgãos como o Conselho Federal de Psicologia, que é uma das pouquíssimas instituições que se colocam explicitamente contra a patologização das vivências trans. No entanto, ainda vejo muito potencial para ampliarmos e aprofundarmos estes enfrentamentos ao paradigma patologizante, dado o difícil contexto atual em que é complicado até manter uma estrutura precária como a do ‘Processo Transexualizador’ em funcionamento.
O que me motiva em participar deste importante movimento global é a consciência de que um cuidado e atenção adequados às populações trans, em suas diversidades interseccionais e de demandas de saúde, somente pode ser alcançado com o questionamento incessante e crítico de um paradigma de saúde que é extremamente limitado e construído sobre bases normativas violentas (cissexistas, elitistas, racistas, colonialistas). Este enfrentamento, a meu ver, é um caminho necessário para que superemos estas limitações, em um processo que necessariamente se articula com a ampliação das autonomias corporais e de autodeterminação de gêneros, com a defesa de uma saúde não mercantilizada que seja pública, gratuita e de qualidade, e com o fim dos corporativismos médicos que violentam populações há séculos de imposições de colonialidades. Nestes sentidos, compreendo que a despatologização das vivências trans se insere em um amplo projeto de transformação sociocultural, com enfoque particular nas diversidades corporais e de identidades de gênero e suas demandas específicas e complexas.
Gostaria de agradecer pela oportunidade de trazer uma (breve) contextualização brasileira sobre a (psico)patologização das vivências trans, enfatizando também que as especificidades deste paradigma normatizante em países como o Brasil — de história colonial, racista, elitista — se articulam profundamente com colonialidades de poder e saber nas ciências fabricadas no norte global. Neste sentido, estas colonialidades científicas repercutem negativamente contra as perspectivas de gênero que sejam diferentes e mais complexas do que os modelos eurocêntricos que norteiam a construção dos saberes sobre identidades de gênero. Um exemplo importante desta repercussão negativa está na ocidentalidade envolvida na produção discursiva das identidades trans, que não raro apaga e marginaliza experiências, cosmogonias e autopercepções de gênero que não podem ser circunscritas aos paradigmas cisnormativos e ocidentais que influenciam nossas miradas sobre corpos humanos. É preciso descolonizar, interseccionalmente, as diversidades corporais e de identidades de gênero.
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Viviane Vergueiro, mulher transfeminista brasileira, ativista e intelectual pelos direitos Trans. Formada em ciencias económicas passa ao mundo das ciencias humanas e sociais para estudar e pensar as problemáticas dos sujeitos Trans e de generos inconformes a partir de matrizes epistemológicas que procuram romper com o essencialismo e a normatividade das ciencias coloniais.